Balada da Solidão
A vida ensinou-me a não olhar para trás. Mas não por medo, ou por vontade, até porque o tempo, que dizem que tudo apaga, só serve para nos roubar as horas e gravar na memória os piores momentos. E ficamos presos lá dentro, como peixes num aquário, enquanto a vida corre lá fora, e os outros respiram e se movem em liberdade, sem sequer reparar que estamos ali, fechados em nós mesmos, presos numa bola de vidro transparente que nos mostra o mundo onde não conseguimos viver. E, como o presente não passa de uma prisão dura e pesada, já basta o esforço de a aguentar, por isso olhar para o passado transforma-se num exercício estéril e inútil que só rouba mais tempo e que não serve para nada.
Quando me vens à memória, lembro-me sempre daquele abraço imenso, nas ruelas perdidas de Sintra, um abraço que me levou para fora deste mundo, enquanto assistia ao desenrolar da minha anterior existência. Lembro-me que senti muito medo. Um medo enorme, quase infinito, como se desaparecesse nos teus braços e não voltasse. Mas o teu olhar azul tranquilizou-me, a tua voz era um bálsamo de doçura e magia e as tuas palavras, certas e serenas, faziam-me sentir que tudo estava certo e, por isso, quando passavas muito devagar as tuas mãos pela minha cara e ficavas a nadar nos meus olhos era como se me levasses para um lugar qualquer só nosso, cheio de verde e azul, e se calhar era por isso que te dizia que confiava em ti, e, mesmo quando não vinhas, eu adormecia tranquila e serena, porque já te tinha cá dentro e pensava que podia ser assim para sempre.
Vivi alguns meses neste estado de plenitude a que uns chamam delírio absurdo e outros amor total, esperando-te com paciência, desejando-te com contenção, sonhando sempre com o teu regresso, porque de repente tudo me parecia certo e perfeito. Era certo e prefeito o teu olhar protector, o toque das tuas mãos do tamanho das minhas, o teu peso em cima do meu corpo, a tua respiração regular quando dormias, as palavras que me dizias quando falavas do futuro e dos nomes dos nossos filhos.
Hoje, depois da dúvida e da desilusão se terem instalado na minha consciência e me chamarem à razão todas as manhãs, fecho a porta a esse passado que já me alimentou e tento não pensar nada para não pensar que me enganei, que me enganaste, que te enganaste ou que nos enganámos os dois. A vida ensinou-me a aceitar em vez de querer, a esquecer em vez de julgar, a não guardar rancor e a dobrar a tristeza, sem nunca deixar de amar e proteger aqueles que já fizeram parte dela.
Mas à noite, quando adormeço na cama imensa onde me falta um corpo, uma respiração, o último olhar do dia pousado na minha pele que dizias conhecer desde sempre, vejo-te dentro da bola de vidro, triste e aleatório como um peixe, às voltas sobre ti mesmo, a olhar para o mundo cá fora, e sinto que deves estar tão sozinho como eu.
Margarida Rebelo Pinto, in 'Nazarenas e Matrioskas'
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